A abundância do sorriso explicada a sisudos convicto
O sorriso fácil  divide opiniões. Há os que gostam, há os que não gostam. Do que eu não  gosto, enquanto regular praticante do sorriso, é que lhe chamem «fácil».  Nos dias que correm, sorrir abundantemente por convicção será talvez  das coisas mais difíceis de fazer. Não porque a vida vai mal (o que será  bom argumento para a falta de sorriso, mas melhor argumento ainda para a  absoluta necessidade de um), mas por causa do mau nome que lhe foi  sendo imposto. Pouco o vamos encontrando pelas ruas, nas fotos de  revistas, na televisão. Segundo os padrões contemporâneos, sorrir é  pouco estiloso. Sorrir retira credibilidade e respeito. «Muito riso,  pouco siso» continua a aplicar-se, apesar da aparente contradição na  utilização de um dito antigo para justificar uma crença moderna. Quem  sorri muito é olhado com desconfiança pelos defensores da sisudez  institucional e instituída. Provavelmente porque intuem que existe um  complexo mundo de significados para os diversos sorrisos dados,  consoante o contexto em que ocorrem, cuja compreensão lhes escapa. O que  ainda não perceberam é que utilizá-los de forma sábia é uma  demonstração não apenas de simpatia mas de inteligência emocional  também. Os sorrisos são tão eloquentes quanto as palavras e abreviam a  comunicação, evitando mal-entendidos ou mesmo possíveis confrontos. O  sorriso que é oferecido a alguém quando duas pessoas esbarram uma na  outra na rua procura contrariar o impulso para o insulto. Não poderá  nunca ser metido no mesmo saco daquele que é oferecido a alguém que nos  segura a porta para entrarmos, ou que nos entrega as chaves que caíram  no chão. São dois sorrisos completamente diferentes. O primeiro é  utilizado para pedir desculpa, o segundo, para dizer «obrigado». Um  sorriso sacado no momento certo faz toda a diferença. Quando tropeçamos  ou fazemos algum disparate em público, é imperativo que saquemos  prontamente do sorriso «vejam como eu consigo rir de mim próprio», que  frustrará qualquer tentativa de humilhação pública intentada por  terceiros. A crença moderna de que os sorridentes compulsivos serão  assim a atirar para o choninhas e de que os carrancudos é que são  pessoas de fibra pode revelar-se chata, porque precisando de pedir  favores e de aborrecer alguém com uma conversa que não interessa para  nada, escolhe-se o tipo que sorri para nós e não o tipo que está com  cara de poucos amigos. Mas até isto pode ser transformado numa vantagem,  pois assim andamos muito mais bem informados acerca de tudo o que nos  rodeia, requisito indispensável ao sucesso das venturas próprias. Nada  mais longe da verdade, portanto, achar-se que sorrir muito é sinal de  subserviência. Andar por esta vida com um sorriso nos lábios é o  derradeiro acto de provocação à tendência sorumbática generalizada.  Diria mesmo que será um acto de rebelião muito maior do que professar o  já muito batido ar blasé. Há lá coisa mais poderosa do que  enfrentar as críticas ou os insultos com um belo sorriso de «a mim não  me afectas tu» nos lábios? É claro que esta filosofia de vida sorridente  terá de ser aplicada com a devida ponderação, pois a linha que separa o  sorriso cheio e contagioso do sorrisinho amarelo e parvo é muito  estreita, mas é tão estreita quanto a linha que separa o ar de seriedade  do ar de enjoadinho das dúzias. O truque para se apresentar uma  expressão facial que denote naturalidade e não impostura é,  precisamente, utilizá-la quando nos apetece e não por imposição social.  Já há tanta coisa que nos vai ficando vedada aos quereres, era o que  faltava termos de sujeitar um bom sorriso rasgado à ditadura das faces.
Ana Bacalhau 
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