sábado, 18 de fevereiro de 2012

Crónica



A abundância do sorriso explicada a sisudos convicto

O sorriso fácil divide opiniões. Há os que gostam, há os que não gostam. Do que eu não gosto, enquanto regular praticante do sorriso, é que lhe chamem «fácil». Nos dias que correm, sorrir abundantemente por convicção será talvez das coisas mais difíceis de fazer. Não porque a vida vai mal (o que será bom argumento para a falta de sorriso, mas melhor argumento ainda para a absoluta necessidade de um), mas por causa do mau nome que lhe foi sendo imposto. Pouco o vamos encontrando pelas ruas, nas fotos de revistas, na televisão. Segundo os padrões contemporâneos, sorrir é pouco estiloso. Sorrir retira credibilidade e respeito. «Muito riso, pouco siso» continua a aplicar-se, apesar da aparente contradição na utilização de um dito antigo para justificar uma crença moderna. Quem sorri muito é olhado com desconfiança pelos defensores da sisudez institucional e instituída. Provavelmente porque intuem que existe um complexo mundo de significados para os diversos sorrisos dados, consoante o contexto em que ocorrem, cuja compreensão lhes escapa. O que ainda não perceberam é que utilizá-los de forma sábia é uma demonstração não apenas de simpatia mas de inteligência emocional também. Os sorrisos são tão eloquentes quanto as palavras e abreviam a comunicação, evitando mal-entendidos ou mesmo possíveis confrontos. O sorriso que é oferecido a alguém quando duas pessoas esbarram uma na outra na rua procura contrariar o impulso para o insulto. Não poderá nunca ser metido no mesmo saco daquele que é oferecido a alguém que nos segura a porta para entrarmos, ou que nos entrega as chaves que caíram no chão. São dois sorrisos completamente diferentes. O primeiro é utilizado para pedir desculpa, o segundo, para dizer «obrigado». Um sorriso sacado no momento certo faz toda a diferença. Quando tropeçamos ou fazemos algum disparate em público, é imperativo que saquemos prontamente do sorriso «vejam como eu consigo rir de mim próprio», que frustrará qualquer tentativa de humilhação pública intentada por terceiros. A crença moderna de que os sorridentes compulsivos serão assim a atirar para o choninhas e de que os carrancudos é que são pessoas de fibra pode revelar-se chata, porque precisando de pedir favores e de aborrecer alguém com uma conversa que não interessa para nada, escolhe-se o tipo que sorri para nós e não o tipo que está com cara de poucos amigos. Mas até isto pode ser transformado numa vantagem, pois assim andamos muito mais bem informados acerca de tudo o que nos rodeia, requisito indispensável ao sucesso das venturas próprias. Nada mais longe da verdade, portanto, achar-se que sorrir muito é sinal de subserviência. Andar por esta vida com um sorriso nos lábios é o derradeiro acto de provocação à tendência sorumbática generalizada. Diria mesmo que será um acto de rebelião muito maior do que professar o já muito batido ar blasé. Há lá coisa mais poderosa do que enfrentar as críticas ou os insultos com um belo sorriso de «a mim não me afectas tu» nos lábios? É claro que esta filosofia de vida sorridente terá de ser aplicada com a devida ponderação, pois a linha que separa o sorriso cheio e contagioso do sorrisinho amarelo e parvo é muito estreita, mas é tão estreita quanto a linha que separa o ar de seriedade do ar de enjoadinho das dúzias. O truque para se apresentar uma expressão facial que denote naturalidade e não impostura é, precisamente, utilizá-la quando nos apetece e não por imposição social. Já há tanta coisa que nos vai ficando vedada aos quereres, era o que faltava termos de sujeitar um bom sorriso rasgado à ditadura das faces.

Ana Bacalhau

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